sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Lançamento do livro "Jung e o laboratório da alma: a psicologia analítica examinada pela teoria do ator-rede"



Queridos amigos, colegas e desconhecidos,

Estou lançando meu primeiro livro individual. Espero todos vocês no lançamento, dia 11 de dezembro!
Segue abaixo a introdução do livro, para vocês poderem ter uma melhor ideia do que se trata.


JUNG E O LABORATÓRIO DA ALMA:
A PSICOLOGIA ANALÍTICA EXAMINADA PELA TEORIA DO ATOR-REDE

INTRODUÇÃO [sem as notas de rodapé]


O psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) é o fundador da psicologia analítica, uma das principais correntes da psicologia e psicoterapia do século XX. Suas concepções sobre a psique são o produto de mais de 50 anos de observação clínica de pacientes, do exame de sua própria vida anímica e de vasta pesquisa bibliográfica. Movido por um forte espírito interdisciplinar, buscou inspiração na filosofia, etnologia (ciências sociais), biologia, mitologia, religião, alquimia e física. O resultado deste esforço prático e intelectual está consolidado em uma extensa obra escrita, que compreende cerca de 30 volumes entre livros, seminários e cartas.

Jung iniciou sua carreira profissional em 1900 como psiquiatra assistente no Hospital Psiquiátrico Burghölzli, em Zurique, então dirigido por Eugen Bleuler. No período de cerca de 10 anos em que trabalhou na instituição, desempenhou um papel fundamental na concepção do moderno conceito de esquizofrenia, colaborando para a formulação de uma etiologia psíquica da psicose. Mas o que de fato lhe rendeu fama internacional no campo da psiquiatria, já naquela época, foram seus experimentos com associação de palavras e sua teoria dos complexos. Nestes primeiros anos de exercício da psiquiatria, Jung travou contato profissional com importantes nomes no tratamento de doenças mentais, além de Bleuler, que influenciaram sobremaneira sua pesquisa psicológica nos anos posteriores, como o psiquiatra francês Pierre Janet, o psicólogo suíço Théodore Flournoy e o psicanalista vienense Sigmund Freud.

Em 1906, Jung escreve a Freud dando início tanto a uma colaboração profissional quanto a uma amizade pessoal, que se estenderam durante os seis anos seguintes, aproximadamente. Neste período de adesão às ideias freudianas, Jung ajudou a fazer da psicanálise um movimento de alcance internacional. Exerceu então as funções de presidente da Associação Psicanalítica Internacional e de editor do primeiro periódico psicanalítico. Ajudou a organizar os primeiros congressos internacionais de psicanálise. Sugeriu ainda a exigência da análise didática para futuros analistas, procedimento até hoje básico na formação dos psicoterapeutas, sejam freudianos ou junguianos (Shamdasani, 2003).

Divergências pessoais e teóricas fizeram Jung afastar-se de Freud e da psicanálise (ou seria o caso de dizer que Freud e a psicanálise se afastaram de Jung?). Este afastamento significou, ao mesmo tempo, o aprofundamento da pesquisa de outros saberes – filosóficos, biológicos, etnológicos etc. – que, em conjunto, contribuíram para a elaboração de uma teoria psicológica e prática psicoterapêutica próprias, que Jung denominou “psicologia analítica”.

No período que vai de 1914 até 1920, lançou as bases teóricas de sua psicologia por intermédio de concepções como as de símbolo, imaginação ativa, função prospectiva do inconsciente, inconsciente coletivo, arquétipo, processo de individuação, função transcendente, realidade psíquica e tipos psicológicos. Nestes anos ocorreu, ainda, o nascimento do Clube Psicológico, local de debate das ideias nascentes da psicologia analítica. O Clube foi a semente do que mais tarde, em 1948, veio a ser o Instituto C. G. Jung, até hoje o principal centro mundial de formação de analistas junguianos.

A saída definitiva do Burghölzli, em 1910, implicou uma mudança significativa no perfil da clientela de Jung. Como o hospital psiquiátrico era uma instituição pública, boa parte de seus pacientes era proveniente das classes mais baixas. Clinicamente, havia grande quantidade de pacientes psicóticos ou sofrendo de transtornos mentais similarmente graves. No seu consultório privado, diferentemente, Jung passou a atender apenas pacientes neuróticos (salvo raras exceções), em sua maioria pessoas bem educadas, das classes média e alta, bem adaptadas do ponto de vista social (Bair, 2003). Nomes ilustres como o escritor Hermann Hesse, o físico Wolfgang Pauli e o psicólogo HenryMurray foram seus pacientes particulares.

A partir de 1929, Jung passou a investigar o simbolismo alquímico e religioso como fenômeno psíquico, procurando traçar paralelos entre o material proveniente destas áreas e as experiências observadas em seus pacientes. Seus interesses, sempre variegados, fizeram-no levar suas reflexões psicológicas para além do setting analítico e discutir problemas contemporâneos como o nazismo, a massificação do homem moderno e a crença em discos voadores. Jung (1981) buscou ainda aproximar a pesquisa dos processos inconscientes das formulações da física contemporânea.

Jung faleceu em 1961, aos 86 anos. Após quase 50 anos transcorridos desde sua morte, qual a sua contribuição para a cultura contemporânea, em particular para a psicologia? Que ele tem a ainda a oferecer-nos? Dito de outro modo, qual a sua herança?

HERANÇA E HERESIA

Pode-se pensar a herança de Jung de diversas maneiras. Poderíamos invocar, primeiramente, sua contribuição teórica:

Ψ a noção de psique como um fenômeno sui generis;

Ψ a teoria dos complexos como indicador de um psiquismo irredutivelmente multifacetado;

Ψ a teoria dos arquétipos e do inconsciente coletivo como tentativa de articular biologia, etnologia e psicologia, o arcaico e o moderno, o individual e o “coletivo”;

Ψ o conceito de individuação como meio de descrever a personalidade em termos de uma tendência à diferenciação;

Ψ a teoria dos tipos psicológicos, que deu ensejo à formulação de inventários contemporâneos de personalidade; e

Ψ a psicologia do inconsciente como instrumento de estudo da psicologia da religião.

Mas poderíamos igualmente considerar, como principal legado, seus aportes para a prática clínica:

Ψ a transformação do experimento de associação de palavras de Galton e Wundt no primeiro teste projetivo em psicologia;

Ψ a sugestão de que o analista deve ser ele próprio analisado;

Ψ a atenção para com o aspecto prospectivo da experiência psíquica;

Ψ a criação do método da imaginação ativa no trabalho com as imagens psíquicas; e

Ψ o método dialético como o procedimento fundamental na relação entre analista e paciente.

Entretanto, acredito que a contribuição maior de Jung para a cultura e psicologia contemporâneas não resida exatamente em nenhum destes tópicos. Seu legado teria mais a ver com uma espécie de atitude ou modo de ação do que propriamente com o conteúdo ou ato em si. Como bem observou James Hillman – certamente o nome mais importante surgido no universo da psicologia analítica depois de seu fundador – Jung parecia ter “o olhar para idéias heréticas, radicais” (Hillman, 1988, p. 9). Com efeito, desde o começo de sua atividade profissional, o interesse pelo lado estranho, anômalo, excepcional da psique se fazia presente.

Um primeiro exemplo: em vez de seguir a pesquisa do funcionamento das associações de palavras, nos moldes de Wundt, Kraepelin e Aschaffenburg, Jung se interessou exatamente em saber como, quando e por que as associações não funcionavam, ou seja, falhavam (ver Capítulo 2). Isto o conduziu à formulação da teoria dos complexos, que descreve a psique como constituída de agrupamentos ideo-afetivos semi-autônomos. Em virtude de sua “intencionalidade”, os complexos podem ser comparados a espíritos, daimones e divindades.

Para Jung, o homem moderno, ao menosprezar tais fatores como “nada mais que” atividade psíquica – mesmo quando, na forma de uma neurose ou psicose, destroem sua vida –, coloca-se em desvantagem em relação ao “primitivo”, que sabe reconhecer a potência desses fatores quando os denomina “deuses” ou “espíritos” e com eles tenta haver-se.

Nota-se a atitude herética, controversa, subversiva de Jung no seu entusiasmo por outro subversivo da história da psicologia, Sigmund Freud. O psiquiatra suíço foi um dos raros leitores da primeira edição de A interpretação dos sonhos, datada de 1900 – o livro de Freud vendeu apenas 351 cópias nos primeiros seis anos de publicação. Jung escolheu tomar o partido de Freud quando este não era ainda a figura notável no campo da psicopatologia, que veio a tornar-se. Diferentemente de si mesmo e de Bleuler, que gozavam de reputação internacional no círculo psiquiátrico em meados da primeira década do século XX (Kerr, 1997), Freud e sua psicanálise causavam profunda desconfiança entre seus pares.

Posteriormente, em 1912, quando Jung já não podia desconsiderar suas divergências em relação a Freud – o rompimento “oficial” dos dois era apenas uma questão de tempo – foi por meio das palavras de outro “herege”, o filósofo Friedrich Nietzsche, que se pronunciou. Na carta de três de março daquele ano, citando o Zaratustra, anotou: “Paga-se mal a um professor se se permanece apenas um aluno” (Jung citado por McGuire, 1993, p. 496). Ao término da citação, concluiu: “Foi isso que o senhor me ensinou através da ΨA [psicanálise]” (p. 497).

A heresia de Jung se mostrou também presente na eleição de temáticas estranhas à ortodoxia científica, como a mitologia, o gnosticismo e mais tarde a alquimia, que considerou a antecessora histórica da psicologia do inconsciente. Ao fazer a aproximação entre psicologia analítica e alquimia, um saber considerado pela comunidade científica como inteiramente ultrapassado, Jung estava sem dúvida arriscando a credibilidade como psiquiatra e cientista, mesmo que sua comparação se restringisse tão-somente à esfera psicológica. Escreveu ainda sobre I-Ching, Zen-Budismo e parapsicologia antes de esses assuntos se tornarem bens de consumo pelo insosso mercado da New Age. E mesmo quando abordava um tema contemporâneo, como o fenômeno do nazismo nos 1930 e 1940, seu olhar era no mínimo “singular”. Percebeu na ascensão do nacional-socialismo a presença mítica do furioso Wotan, o velho deus germânico da tormenta. Descreveu os alemães da época como “possuídos” por esse deus. Traduzida em linguagem psicológica, tal possessão significaria a identificação da consciência subjetiva com um fator psíquico irracional, um arquétipo (ver Capítulos 2 e 3).

Outra matéria em que Jung foi mais uma vez “escandaloso” e “iconoclasta” foi a religião cristã. E aparentemente desde muito cedo. Filho de pai pastor, o menino Carl Gustav foi criado, no final do século XIX, em uma atmosfera marcada pela religiosidade protestante, o que não o impediu, entretanto, de viver experiências psíquicas perturbadoras e demasiado estranhas à mentalidade cristã. A primeira delas foi um sonho de quando tinha três ou quatro anos de idade. Sonhou que se achava em um campina; notou que havia uma cova no chão e, curioso, decidiu explorá-la. Dentro, deparou-se com um trono sobre o qual se erguia uma figura grande como uma árvore, feito de pele e carne viva. Sua parte superior era cônica e arredonda. Não tinha rosto, salvo um único olho que, imóvel, fitava o sonhador. Ouviu então a voz de sua mãe dizendo para olhar bem para a criatura porque se tratava do “devorador de homens”. Aterrorizado, despertou. O pavor gerado pelo sonho foi tão forte que por vários dias não queria dormir, temendo a repetição do pesadelo. Mais tarde veio a reconhecer na “forma estranha”, monstruosa, sobre o trono um “falo ritualístico” (Jung, 1985a).

A segunda experiência de Jung reveladora de uma espécie de atitude iconoclasta face ao cristianismo foi uma visão que lhe arrebatou a alma quando tinha então 12 anos. Diante de seus olhos “viu” a bela catedral de sua cidade sob o céu azul. Muito acima, no alto, estava Deus instalado em seu trono de ouro. Segundo suas próprias palavras, “debaixo do trono, um enorme excremento cai sobre o teto novo e colorido da igreja; este se despedaça e os muros desabam” (Jung, 1985a, p. 47).

Muitos anos depois – década de 1930 em diante – quando já era um profissional renomado, Jung transformou sua inquietação juvenil com o cristianismo em madura reflexão psicológica. Apontou uma grave lacuna no símbolo maior do cristianismo, isto é, o símbolo do Cristo. Tratar-se ia de uma imagem inadequada para descrever a totalidade paradoxal da experiência humana (o si-mesmo) porque, identificada exclusivamente com o Bem ou a luz, não reconhece em si sua contraparte inseparável, o Mal, a escuridão do ser. Por sua vez, a figura do homem sem este lado sombrio “carece de corpo e humanidade” (Jung, 1978a, p. 42).

Para Jung, a doutrina cristã da privatio boni (ausência do bem), que buscou reduzir o mal a uma simples “falta acidental de perfeição”, não possuindo desse modo substância enquanto tal, em nada corresponde à realidade ao nível da psicologia empírica, onde o mal é “substancialmente” deletério.

Em 1953, no texto Resposta a Jó, Jung (1988b) foi além em sua análise herética do cristianismo. Descreveu Javé (ou Yaweh) como tendo sido terrivelmente injusto com Jó, ao projetar Sua sombra, isto é, Seu “mal”, sobre o pobre mortal. Nesse sentido, o advento de Cristo foi o modo que Javé encontrou para redimir-se da iniquidade cometida com Jó, sofrendo Ele próprio na carne tal como um homem. Assim, Jung está nos dizendo que o homem salvou Deus e não o contrário. Com esta interpretação “herética”, deslocou o maior sujeito/tema da cultura ocidental (Hillman, 1988). O livro causou enorme mal estar entre os teólogos. Em sua carta de resposta ao padre Victor White, que havia feito uma resenha duríssima do texto – e principalmente de seu autor –, Jung anotou: “Acho que sou um herege” (2002, p. 148). Mais adiante, concluiu: “Decididamente não estou do lado do vencedor, mas sou muito impopular tanto na esquerda quando na direita. Não sei se mereço ser incluído em suas orações” (p. 148).

Heresia, subversão e deslocamento do habitual como o principal legado de Jung? Não entendo a atitude “herética” junguiana como um libelo a favor da ação “revolucionária” ou algo semelhante, mas, antes, como metáfora sugestiva da importância do risco para poder-se produzir diferenças, criar novidade. Mas será que todos os que se dizem seguidores da psicologia analítica pensam assim? Ora, a herança, qualquer que seja, não existe por si só. É preciso práticas reiteradas para sustentá-la e prolongá-la, sem as quais ela simplesmente não existiria. Como mostrou a psicóloga belga Vincienne Despret (2001), nossas práticas efetuam nossa herança; são o seu vetor. Isto transforma a herança em um problema e não mais em solução. Paradoxalmente, uma herança se torna algo que ao mesmo tempo se recebe e se constrói. Quer dizer, somos efeito e agentes construtores de nossa própria tradição. Pensando desse modo, podemos indagar o que os junguianos têm feito com sua herança? Qual a sua atitude em face da tradição que receberam? Para responder esta questão convém primeiro diferenciar “visão de mundo” e “versão de mundo”.

“SUBVERTENDO” JUNG

Podemos definir teorias e práticas em termos de visões ou versões de mundo (Despret, 2001). Quando julgamos nossas concepções e ações de modo adversativo como verdadeiras ou falsas e consequentemente eliminamos a possibilidade de convivência entre diferentes e múltiplos saberes, estamos adotando uma visão de mundo. Assim como uma estrada percorrida repetidas vezes, uma visão de mundo produz em nós o sentimento de segurança, a fantasia de estar em um território protegido e resguardado. Ocorre, porém, que toda esta proteção tem um preço: sem correr riscos, as teorias e as práticas se tornam deterministas e unilaterais, não produzindo senão tautologia.

Falar em versões de mundo, diferentemente, significa reconhecer a “coexistência múltipla de saberes, de definições contraditórias e de controvérsias” (Despret, 2001, p. 37). Uma versão implica necessariamente outra versão ou “contraversão”, a qual vem contrapor-se ou modificar. Afirmar a pluralidade de saberes não significa, entretanto, sustentar que se equivalham. Em vez de avaliá-los como verdadeiros ou falsos – como no caso de uma visão – devemos nos perguntar qual versão é mais articulada. Por articulação de uma versão entenda-se a sua capacidade de produzir diferenças e permitir integrar-se com outras versões, prolongando-as e transformando-as. Escolher o caminho desconhecido ou talvez pouco percorrido de uma versão implica risco; risco de gerar versões pouco articuladas, que não produzirão senão redundância e repetição – aproximando-se da noção de visão – e oportunidade de criar-se outras versões mais articuladas que darão ensejo a mais fenômenos existirem e combinarem-se entre si.

Com estas considerações em mente, voltemos à questão levantada anteriormente sobre o modo como os junguianos têm se apropriado de sua herança. Parece-me que muitos fizeram da psicologia de Jung uma visão de mundo. Quer dizer, contentam-se em tomar suas ideias como definitivas e, portanto não querem correr o risco de confrontá-las com outros saberes, fogem da controvérsia como o diabo da cruz. Para estas pessoas basta o que Jung escreveu. Hillman, com um comentário ácido, referiu-se à maioria dos junguianos como “gente de segunda linha com mente de terceira categoria” (1989b, p. 45). Complementou sua avaliação com a seguinte observação: “Eles apenas vivem das ideias de Jung (ou Freud, tanto faz), sem acrescentar nem mesmo uma vírgula por si mesmos. Isto é uma traição gigantesca, uma desonestidade. Você deve pagar por aquilo que ganha de uma escola levando suas idéias adiante” (Hillman, 1989b,p. 45).

Este “levar adiante as ideias de sua escola” significa, primeiramente, conforme Hillman, questionar, duvidar de nossos pressupostos, “permitir-se ser desafiado, arriscar-se em público” (1989b, p. 45). Segundo outro psicólogo analítico, Michael Vannoy Adams (2004), a fraca presença de junguianos na universidade, em escala mundial, teria a ver, precisamente, com esta atitude de não “permitir-se ser desafiado” pelo confronto com ideias diferentes. Adams descreve esse fenômeno em termos de um “isolamento defensivo” dos junguianos.

O próprio Jung, aliás, temia tornar-se doutrina, objeto de culto de seguidores acríticos. Em 1946, explanou seu anseio quanto a isto: “Só espero e desejo que ninguém se torne junguiano. Eu não represento nenhuma doutrina, mas descrevo fatos e apresento certos pontos de vista que julgo merecedores de discussão” (Jung, 2002, p.9).

Entretanto, se nos fiarmos nas observações de Hillman, parece que, infelizmente, o desejo de Jung não se realizou.

Não obstante, para mim, assim como para tantos outros “pós-junguianos” além de Hillman e Adams, as ideias de Jung (como de qualquer outro autor, diga-se de passagem) são tudo menos definitivas e inquestionáveis. Tal como Andrew Samuels, Jean Knox, Wolfgang Giegerich, Christopher Hauke, Paul Kugler e outros, encaro a psicologia de Jung como uma tradição a ser transformada, até para que possa enfrentar as questões do mundo contemporâneo. Penso esta psicologia como uma versão que, de acordo com a herança herética de seu criador, deve ser precisamente posta em risco, deslocada de seu sentido habitual, subvertida e controvertida. Na prática, tal “subversão” ou “controvérsia” significa simplesmente questionar seus pressupostos e conceitos fundamentais, suas proposições teóricas de base, a partir de outro referencial teórico-metodológico. Este livro se propôs a ser este exercício epistêmico de questionamento e troca.

Para levantar as questões que me ajudaram a reimaginar a tradição da psicologia analítica, adotei como referencial teórico-metodológico a teoria do ator-rede (TAR), também denominada sociologia das associações. Michel Callon, John Law e Bruno Latour são comumente considerados seus fundadores, embora certamente outros nomes possam ser-lhes acrescentados. Contudo, como este livro não trata precipuamente sobre a TAR, mas se limita a empregá-la como referencial analítico, decidi por razões de ordem operacional concentrar-me na obra de Latour, principalmente. Dois “aliados” seus, entretanto, foram fundamentais para o enriquecimento da discussão: o sociólogo e jurista francês Gabriel Tarde, com sua definição do que é o “social”, e o etnopsicanalista franco-egípcio Tobie Nathan, com seu trabalho na área da psicoterapia. Que o leitor não estranhe o emprego de uma teoria sociológica para analisar a psicologia analítica. Como será mostrado no início do Capítulo 1, Jung e a etnologia têm em comum muito mais do que se imagina.

Em linhas gerais, a TAR tem-se afirmado como um saber que rejeita a descrição do mundo “moderna”. Latour (2005b) não se refere à modernidade como um período histórico marcado pela ruptura com um passado. Antes, entende que se trata de um conjunto de práticas que não coincidem com sua teoria. Os modernos teriam teoricamente concebido uma realidade bifurcada em natureza e cultura, sujeito e objeto, indivíduo e sociedade, liberdade e determinismo. Porém, na prática, não era assim que operavam, já que estavam todo o tempo trabalhando com seres híbridos, entidades simultaneamente sociais e naturais. Latour vai então chamar de “não modernos” todos aqueles que partem primeiramente desse lugar central de mistura e indeterminação.

A TAR, como versão não moderna de ciência social, propõe, no lugar dos grandes divisores modernos citados, noções e conceitos como coletivo, ator, rede, fatiche, mediador, vínculo e outros, a fim de descrever os eventos e processos sociais de modo mais próximo da complicação que lhes é inerente (ver Capítulo. 1).

Este livro buscou então examinar onde a psicologia analítica pode ser considerada não moderna, articulando-se com a TAR, e apontar também onde as duas não combinam, como nas ocasiões em que a psicologia analítica reproduz a lógica moderna. Portanto, não se tratou de querer reduzir a psicologia de Jung à TAR. Em vez disso, seria mais adequado pensar o emprego da TAR como uma espécie de reagente químico que, aplicado à substância “psicologia analítica”, promoveu determinadas “reações” que se desejou conhecer. O texto, isto é, o livro, tornou-se desse modo um laboratório de experimentação do pensamento e da imaginação.

Trata-se, vale dizer, de uma abordagem inédita. Com efeito, são raríssimas as referências a Latour nas obras de junguianos. Acredito que, reapropriando-se da herança de Jung por intermédio da TAR, podemos propor-lhe novos problemas, abri-la a novos sentidos. As diferenças, conforme observou Latour (2002b), são alimento para o pensamento. Que versão de psicologia analítica então é esta que desponta depois de efetuada a sua mistura com a sociologia das associações? O leitor benevolente que tire suas próprias conclusões ao cabo do texto.

A PSICOLOGIA ANALÍTICA: PRÉ-MODERNA, MODERNA, PÓS-MODERNA... E NÃO MODERNA!

Convém recordar que, curiosamente, a psicologia analítica foi anteriormente classificada como “pré-moderna”, “moderna” e “pós-moderna”, o que sugere uma complexidade ao nível de suas ideias fundamentais, visto permitirem leituras tão heterogêneas. Vejamos resumidamente o que dizem os defensores destas análises.

Em 1981, o renomado psicanalista francês J.-A. Miller acusou de ser “o movimento junguiano anterior ao discurso da ciência” (Miller, 1999, p. 61). Assim como astrologia, a psicologia de Jung operaria instituindo correspondências entre o micro e o macrocosmo, disse Miller. Segundo Michel Foucault (1976), a episteme pré-moderna do século XVI se caracterizava por uma mescla de razão, magia (cabala, alquimia, astrologia etc.) e erudição textual. O principal traço deste saber era o raciocínio por semelhanças. Em cada coisa – os astros, o Homem, os animais, as plantas, os minerais – era possível identificar uma correspondência ou analogia com outra coisa. O mundo se dobrava sobre si mesmo, como imenso espelho onde umas figuras se projetavam nas outras, num jogo de afinidades e similitudes infinito. Com o advento da ciência moderna, esse mundo de correspondências foi aos poucos se desfazendo, as palavras se separando das coisas. Com estas considerações em vista, Miller parece sugerir que Jung não teria realizado a necessária separação entre palavras e coisas, característica da ciência moderna. Dessa maneira, a crítica está posta, a acusação consumada: o psiquiatra suíço é ultrapassado, anacrônico. Jung é, dir-se-ia, um “pré-moderno”.

Sonu Shamdasani, historiador da psicologia ligado a University College of London, publicou em 2003: Jung and the Making of Modern Psychology, livro fundamental para compreender-se o lugar ocupado por Jung na história da psicologia “moderna”. Shamdasani chama a atenção para a preocupação de Jung com o estado de fragmentação em que se encontrava a psicologia à sua época. Para o psiquiatra suíço, a grande dificuldade de fazer-se da psicologia uma ciência residia justamente no fato de que seu objeto, a psique, coincidia com o sujeito que deveria observá-la. Assim, as diversas teorias psicológicas existentes – inclusive a sua – simplesmente refletiam a subjetividade, a “equação pessoal”, de seus autores. O estado atual da psicologia, escreveu Jung (citado por Shamdasani, 2003) nos anos 1920, “pode ser comparada à posição da ciência natural no século XIII” (p. 89). Como forma de remediar esta situação, acreditava ser necessário criar-se um vocabulário comum, uma quantidade mínima de princípios comuns entre essas diversas teorias para estabelecer-se uma psicologia minimamente geral (ver Capítulo 2).

De modo algum, contudo, Jung pretendia que a psicologia analítica fosse a “Psicologia”, mas uma teoria que pudesse contribuir para esse projeto de uma psicologia geral. E é exatamente aqui que Shamdasani (2003) situa o conceito de inconsciente coletivo (e seus conteúdos, os arquétipos). Tratar-se-ia da tentativa de Jung de estabelecer um nível de universalidade da personalidade subjacente às diferenças individuais. O inconsciente coletivo, ultrapassando as contingências culturais, seria o “natural” psíquico. Sua universalidade é que asseguraria a cientificidade da psicologia. Refletindo de acordo com a abordagem sociológica de Latour, o esforço de Jung em demarcar um inconsciente coletivo natural revelaria um trabalho teórico tipicamente moderno de purificação dos fatos das crenças que os obscurecem. Desse ponto de vista, Jung é um “moderno”.

Finalmente, o analista junguiano inglês Christophe Hauke (2003) nos oferece uma terceira via para situarmos Jung, a pós-modernidade. No seu livro Jung and the Postmodern, de 2000, Hauke identifica o termo “moderno” com o estilo de racionalidade vigente no Ocidente desde o Iluminismo, sobretudo. Estilo que poderia ser resumido como a crença no Progresso, na Verdade e na Razão. Pós-moderno, então, não seria exatamente um período histórico mas, antes, uma posição crítica diante desses valores. A psicologia de Jung, segundo o analista inglês, teria aspectos pós-modernos quando em muitos momentos põe em causa os preceitos estabelecidos da modernidade. Se pensarmos como Latour, o problema do enfoque de Hauke talvez seja o mesmo do de Miller: acreditar que o projeto moderno efetivamente se consumou. Isto é, se de fato “jamais fomos modernos”, que dizer então de uma suposta pré-modernidade ou pós-modernidade?

Moderno, pré-moderno, ou pós-moderno... Jung foi provavelmente um pouco dos três, dependendo do ângulo em que nos situarmos para analisá-lo. Creio, entretanto, que nenhum desses enfoques esgota o debate em torno da psicologia analítica. Cada um ao seu modo, supõe que de fato houve uma “modernidade”, que seu projeto de separar natureza e cultura foi, na prática, em algum momento vitorioso. Por outro lado, pensar a psicologia analítica não modernamente significa enfatizar aquilo que os modernos faziam, mas não admitiam, ou seja, operar com entidades socionaturais, híbridas, vinculadas. Em suma, aqui se está propondo a possibilidade de mais uma versão da psicologia analítica; versão que se deseja, antes de tudo, bem articulada.

O livro está dividido em quatro capítulos:

O Capítulo 1 discute questões como a divisão moderna da realidade em natureza e cultura, os diferentes sentidos para o “social” e a crise da objetividade. Buscou-se descrever as ideias, os conceitos e os princípios metodológicos da TAR, tais como coletivo, proposição, ator-rede, plasma, vínculo etc., que serviram de termo de comparação e análise da psicologia analítica nos demais capítulos. Os escritos de Bruno Latour são aqui a principal fonte de informações, seguidos em menor grau dos trabalhos de Tobie Nathan e Gabriel Tarde. Convém dizer que Nathan, por desenvolver uma prática em psicoterapia, permitiu propor à psicologia clínica de Jung determinadas questões que o enfoque mais estritamente sociológico de Latour e Tarde não possibilitavam.

O Capítulo 2 inicia a apresentação da psicologia analítica de Jung. Trata essencialmente da definição de psique e da descrição de suas agências. Procurou-se aproximar o conceito junguiano de realidade psíquica da noção de mediador de Latour. De modo análogo, tentou-se mostrar a compatibilidade entre as ideias de ator-rede, interação das mônadas e a teoria dos complexos. No que concerne à teoria dos arquétipos, destacou-se o movimento caracteristicamente moderno de Jung no sentido de separar natureza e cultura e, ao mesmo tempo, reatá-las. Buscou-se, ainda, ressaltar uma leitura pragmática dos arquétipos, tornando possível que fossem comparados aos transpavores de Latour.

O Capítulo 3 procurou enfatizar o aspecto relacional dos conteúdos anímicos. A noção junguiana de “relação” permitiu uma comparação promissora com a noção de vínculo de Latour. A “relação” pode ser observada tanto intrapsiquicamente, quando se refere às interações entre os diferentes componentes anímicos, quanto interpsiquicamente como, por exemplo, no encontro analítico entre terapeuta e paciente. Procurou-se ainda mostrar como o método dialético de Jung guarda forte semelhança com certas regras metodológicas da TAR.

O Capítulo 4, o final, focou-se sobre o método da imaginação ativa e o método construtivo de Jung. A imaginação ativa envolve, ao nível psíquico, tarefas semelhantes às descritas por Latour em relação ao “coletivo”. Revela, ainda, a inseparabilidade das esferas natural e social na experiência psíquica de fantasia. O método construtivo, por sua vez, mostra-se, em muitos aspectos, afinado com a influenciologia etnopsicanalítica de Nathan.

Em todo o texto, busquei seguir o “ator” Jung de tão perto quanto possível. Com isto, quero dizer que tentei ser primeiramente descritivo para, só em um segundo momento, propor as comparações com a TAR. Esta ênfase sobre a descrição se traduziu, como era de esperar-se, na preferência por fontes primárias. Não obstante, alguns livros de “comentaristas” foram fundamentais para realização deste trabalho: o fenomenal Jung and the Making of Modern Psychology, de Sonu Shamdasani, Jung and the Postmodern, de Christopher Hauke, e os escritos de James Hillman, em particular Healing Fiction.

O “laboratório da alma” a que o título deste trabalho faz referência tem um duplo aspecto, que convém explicitar. De um lado, trata-se da concepção que Jung fazia de seu trabalho psicoterapêutico, como se procurou mostrar no Capítulo 4. De outro, aponta a função experimental inerente à escrita deste livro ele próprio: isto é, este texto como “laboratório” de ideias ou do pensamento – o texto como “laboratório da alma”.


Henrique Pereira

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