sábado, 28 de agosto de 2010

O ladrão de sonhos e a anima: um comentário sobre "A Origem"

Segundo os hindus, o mundo em que vivemos é um sonho de Brahma. Para os aborígines australianos, passado, presente e futuro não apenas existem em um Tempo do Sonho, mas são Sonho. Na Grécia antiga, Homero localizou a “terra dos sonhos” nos confins do mundo real, mais próxima, portanto, das origens. Os sonhos sempre fascinaram o homem. Desde tempos imemoriais. E hoje não é diferente. A Origem, filme dirigido por Christopher Nolan, mescla espionagem, efeitos especiais e sonhos. James Bond, Matrix e Carl Jung. Seu ponto forte, para mim, não se encontra nos artifícios digitais, cada vez mais espetaculares, tampouco na formosura de Marion Cotillard, mas, sim, na temática, os sonhos. É possível controlar os sonhos? Compartilhá-los? E se assim o for, por que não roubar as ideias guardadas no inconsciente alheio? A Origem é sobre um ladrão de sonhos, Dom Cobb (Leonardo Di Caprio), psicopompo pós-moderno cujo ganha-pão é roubar ideias do “subconsciente” do sonhador incauto, geralmente um homem de negócios, para vender a outro homem de negócios. Espionagem industrial com psicotecnologia profunda.

A trama de A Origem se desenvolve sobre o que se costuma denominar “sonho lúcido”. Trata-se do sonho no qual o sonhador sabe que está sonhando. E por se achar num mundo de sonho, ele pode fazer coisas inimagináveis para quem está desperto, como voar ou transformar os objetos ao seu bel prazer. Sonhos lúcidos não são ficção científica; são fatos vivenciados por inúmeras pessoas e tema de pesquisas de universidades respeitadíssimas, como Stanford, nos EUA.

Voltemos à película. Dom é contratado por Saito (Ken Watanabe), um poderoso empresário japonês, para inserir uma ideia no inconsciente do sonhador (diferentemente do furto de ideias, como estava acostumado a fazer). A vítima, Robert Fischer (Cillian Murphy), é o filho de um empresário rival de Saito, que se acha no leito de morte. O filho será em breve o herdeiro de um poderoso conglomerado. Saito deseja eliminar a concorrência, inserindo no inconsciente de Fischer a ideia de que ele deve dividir os negócios do pai.

Para levar o empreendimento adiante, Dom pede ajuda a seu pai, Miles (Michael Cane), que lhe indica a jovem Ariadne (Ellen Page) para ser a arquiteta do sonho a ser desenvolvido na mente do milionário dorminhoco. Dom, Ariadne, Saito e outros comparsas então se unem para invadir o subconsciente de Robert Fischer. Não fica claro, entretanto, como uma pessoa ou várias entram no sonho de outra, como um sonho pode ser compartilhado, tornando possível o contrabando. Trata-se sem dúvida de licença poética para tornar a trama viável.

Uma vez no inconsciente de outra pessoa, o invasor se depara com “defesas”, nas forma de pessoas armadas, guarda-costas, que servem para proteger o sonhador. Uma ideia similar foi formulada por Freud há mais de cem anos, para quem haveria uma espécie de censura (ou censor), cuja função seria a de não permitir que desejos inconvenientes emergissem durante o sono do sonhador, fazendo-o despertar.

O ponto mais interessante é que, para que uma ideia estrangeira seja aceita pela psique do sonhador, ela tem de se articular com outras ideias do próprio sonhador. Caso contrário, será rejeitada como um corpo estranho no organismo. Dom e sua gangue descobriram que Robert e o pai não se davam muito bem. O filho sentia-se rejeitado pelo pai. Um caso clássico de complexo paterno, segundo a psicologia junguiana. A nova ideia, para então ser integrada e agir sobre o psiquismo do sonhador, teria de associar-se a este complexo. A nova ideia – “dividir os negócios do pai” – era introduzida no sonho numa situação em que o pai pedia ao filho que não o imitasse, mas fosse ele mesmo, ou seja, não deveria repetir o que pai fizera. Aderida ao antigo complexo paterno, a ideia nova poderá então surtir efeito.

Paralelamente, há o drama pessoal de Dom, acusado de matar Mal (Marion Cotillard), sua esposa. Esta tinha cometido suicídio porque Dom havia lhe implantado o pensamento de que aquele mundo não era real, que a verdadeira realidade era “outra”. Isto porque os dois haviam se perdido juntos num nível profundo de sonho, alheios ao mundo de vigília. Apesar de morta, Mal continuava uma figura viva no inconsciente de Dom, interferindo em seus sonhos; queria forçá-lo a juntar-se a ela, no sonho ou na morte. A figura de Mal pode ser aproximada ao que Jung chamou de anima. A anima é o inconsciente do homem personificado como mulher e sentido como humores perturbadores. A anima é frequentemente vivida como ilusão que obscurece o juízo. Véu de Maya. Mas é também o fator que confere alma, beleza e animação às coisas. Femme inspiratrice, a anima é o sopro de criatividade inconsciente que fecunda o espírito. Femme fatale, ela é a amante ciumenta que destrói relacionamentos. Mal quer Dom para si. Por isso faz de tudo para atrapalhar suas intenções conscientes, seu “trabalho” de contrabandista de sonhos. É ela quem arrasta Dom para os níveis mais profundos de sonho. Mal é o elemento de incerteza irredutível e incontrolável no psiquismo humano. Mesmo com arquiteturas oníricas pré-fabricadas e sedativos high-tech, a alma, como anima, não se deixa domar, desfazendo a fantasia de objetividade plena do ego racional e instrumental.

Num outro plano, sociológico dir-se-ia, o filme aborda metaforicamente as invasões psíquicas a que todos estamos sujeitos. Ideias se espalham por contágio. Ideias são como daimones, que nos possuem. Na modernidade líquida em que vivemos somos constantemente bombardeados por reclames e injunções consumistas: essere consumire est. Políticos populistas, ditadores e líderes religiosos fundamentalistas, é claro, também espalham sua ideologia. Fico imaginando o que o velho Foucault, com seu jeito ligeiramente paranóico, diria deste filme se estivesse vivo: já não basta quererem domesticar nossos corpos e nossas consciências, agora querem dominar nossos sonhos!

Que então nos impede de sucumbir totalmente a tal blitzkrieg ideológica oriunda de um poder que, a um só tempo líquido e efetivo, às vezes não sabemos sequer com certeza de onde vem e de que é feito? Que em nós resiste bravamente ao assalto de nossos sonhos? Eu diria que é a nossa “Mal interior”. A anima, esse fator de perturbação da ordem consciente vigente, que nem mesmo os contrabandistas de sonho da vida conseguem conter.

Henrique Pereira

8 comentários:

  1. Texto primoroso. Também escrevi algo sobre o filme, sob outra ótica e nem em sonho tão profunda quanto esta análise. Está lá http://mardecoisa.blogspot.com/2010/08/original.html

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  2. You good, you! Usei seu texto para convencer a Ana a assitir o filme comigo…

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  3. Acabei de assistir ao filme. Maravilha de texto, Herex. Acho apenas que formosura é muito pouco para definir a Marion Cotillard. :-)

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  4. Texto ótimo, Henrique. Assisti ao filme e também fiquei mexida com as idéias possiveis ali. Adorei os comentários e a análise muito bem feita por você. Tive um professor na graduaçao que dizia que "a arte antecipa o que está por vir", e não duvido disso também. Afinal, sou junguiana..rs

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  5. Grazie, grazie tanto, Bruno e Maceo!

    Veronique, você tem razão. Jung dizia que certas obras de arte eram "visionárias", porque antecipavam tempos futuros.

    Henrique

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  6. Excelente texto! Sua análise do filme é muito interessante, principalmente ao destacar o papel da anima como aquilo que resiste ao assalto de nossos sonhos.

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  7. Então Henrique... eu, tão paranoico qnto o Focault, me pergunto, até q ponto nossos sonhos não são assaltados ou pior, até q ponto, os nossos sonhos são nossos. Convivemos diariamente com um bombardeio de imagens. Vivenciamos através da TV, inumeras vivências, inumeros imaginários. Até q ponto nosso inconsciente consegue discernir oq é meu e oq foi implantado?

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